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Sejam bem-vindos ao blog da Turma de Letras da Faculdade Anhanguera - Taboão da Serra.

Coordenadores da turma

Coordenadores da turma
Magno Cezar Líder e Adriana vice

terça-feira, 19 de abril de 2011

Introdução à Linguistica

II. Princípios de análise
(José Luiz Fiorin)
Sintaxe: explorando a estrutura da sentença
Esmeralda Vailati Negrão
Ana Paula Scher
Evani de CarvalhoViotti
l. Introdução
Saber como os itens lexicais de uma língua se estruturam em uma sentença é a parte central da competência lingüística dos seres humanos, tal como é entendida pela Gramática Gerativa e como foi abordada no volume l desta Introdução. O falante de qualquer língua natural tem um conhecimento inato sobre como os itens lexicais de sua língua se organizam para formar expressões mais e mais complexas, até chegar ao nível da sentença.
Imaginemos o léxico de nossa língua como uma espécie de dicionário mental composto pelo conjunto de itens lexicais (palavras) que utilizamos para construir nossas sentenças. Nossa competência nos permite ter intuições a respeito de como podemos dividir esse dicionário, agrupando itens lexicais de acordo com algumas propriedades gramaticais que eles compartilham. Essas propriedades nos levam a distinguir um grupo por oposição a outro. Assim, por exemplo, no processo de aquisição de nossa língua materna, sabemos, desde muito cedo, que um item lexical como mesa é diferente de um item lexical como cair. Uma criança logo diz caiu, irias nunca diz mesou. Isso indica que ela sabe que cair faz parte de um grupo de palavras - como chorar, querer, papar-que pode combinar-se com um tipo particular de sufixos, como -ou, -eu, -iu. Ao mesmo tempo, ela sabe que mesa faz parte de um outro grupo de palavras - como cadeira, berço, brinquedo - que, por sua vez, pode se combinar com outro tipo de sufixo.
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Nossa competência lingüística também nos ajuda a perceber que as sentenças de nossa língua não são o resultado da mera ordenação de itens lexicais em uma seqüência linear. Sem nunca ter passado por um aprendizado formal a respeito desse assunto, sabemos que uma seqüência de palavras como menino bicicleta o da caiu não é uma sentença do português. Ao mesmo tempo, sabemos que, para termos uma sentença do português formada por esses mesmos itens lexicais, precisamos, antes, fazer combinações intermediárias: compor o com menino; compor da com bicicleta; compor caiu com da bicicleta; e, finalmente, compor o menino com caiu da bicicleta. Sabemos, portanto, que a estrutura da sentença não é linear, mas sim hierárquica.
Essa nossa competência também nos indica que uma sentença se constitui de dois tipos de itens lexicais: de um lado, estão aqueles que fazem um tipo particular de exigência e determinam os elementos que podem satisfazê-la; e, de outro, estão os itens lexicais que satisfazem as exigências impostas pelos primeiros. Tomemos, como exemplo, uma sentença como 'O João construiu uma casa'. Intuitivamente, sabemos que o verbo construir é um item lexical do tipo que faz exigências. Construir precisa ser acompanhado de duas outras expressões lingüísticas' uma que corresponda ao objeto construído e outra, ao agente construtor. Na sentença em exame, as expressões uma casa e o João são as expressões que, respectivamente, satisfazem essas exigências impostas por construir. Isso e tão natural para nós que só nos damos conta de que as coisas são como são, se formos expostos a uma sentença fora de contexto, em que uma das exigências impostas por construirrâo esteja satisfeita. Imaginemos que alguém se aproxime de nos e nos diga, como início de conversa, 'construiu uma casa'. Nossa reação é imediata! Perguntamos logo 'quem construiu uma casa?'.
Com isso, estamos pedindo a nosso interlocutor que acerte sua sentença, de modo a que as imposições feitas pelo verbo construir sejam satisfeitas.
Nosso objetivo, neste texto, é mostrar como esse nosso conhecimento lingüístico pode ser usado como um guia a nos orientar no trabalho de análise da estrutura das sentenças de nossa língua.
2. Categorias gramaticais
Qualquer falante da língua portuguesa dirá que a palavra menino é do mesmo tipo que garota ou cachorros e de um tipo diferente das palavras comprar, comprou, compraria que, por sua vez, são do mesmo tipo que cantar, cantávamos, cantarão. Ou seja, os falantes de uma língua sabem que um certo item lexical pertence a uma determinada categoria gramatical. Alguns poderiam dizer que esse saber é conseqüência do conhecimento do significado do item lexical em questão. No entanto, se expusermos os falantes a sentenças com palavras inventadas, que não existem no
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dicionário da língua, mas que exibem o comportamento gramatical próprio de uma determinada categoria de palavras, sem dúvida tal falante reconhecerá a palavra inventada como integrante da categoria condizente. Vejamos o conjunto de dados em (1), em que sentenças são construídas com o item lexical plongar, palavra não encontrada em nenhum dicionário da língua portuguesa:
(1) a. Os meninos plongam sempre aos domingos.
b. Na minha infância, eu plongava todas as tardes.
c. Uma vez, um jornalista do Estado plongou vários artistas aposentados.
d. Quando ele chegou, nós estávamos plongando os convidados todos.
Ao tomar conhecimento dos dados em (1), qualquer falante do português classifica a palavra plongar como pertencente à mesma categoria de cantar ou comprar. Mais ainda, se ele tiver conhecimento da metalinguagem da teoria gramatical dirá não só que plongar é um verbo, mas também que é um verbo que tem um sujeito e um complemento. Ele é capaz de dizer essas coisas, pois é capaz de perceber quais são as propriedades gramaticais - morfológicas, distribucionais e semânticas - que caracterizam cada uma das categorias da língua.
Explicitando melhor essas propriedades, podemos dizer que o falante reconhece que o item lexical plongar pertence à mesma categoria do item lexical cantar porque ambos possuem a propriedade de assumir formas variadas dependendo dos traços morfológicos de seus sujeitos, que, de maneira geral, são os elementos que antecedem os verbos. Assim, em (l)a, o elemento que antecede plongar - seu sujeito - tem marcas de 3a. pessoa do plural. Plongar assume, também, marcas de 3a. pessoa do plural, concordando com esse elemento. Da mesma forma, em (l)b, plongar assume as marcas morfológicas correspondentes à 1a. pessoa do singular, uma vez que o elemento que o antecede - seu sujeito - é o pronome eu, que se refere à pessoa que fala. Ou seja, nessas sentenças plongar carrega marcas morfológicas que variam de acordo com os traços de pessoa e número do elemento que o antecede. Essas marcas também variam dependendo de a situação descrita pela sentença ter ocorrido em um tempo anterior ao momento da fala, como em (l)c, ou de estar ocorrendo simultaneamente a uma outra situação, como em (l)d. Ainda, as marcas variam dependendo de o evento ser episódico, como em (l)c, ou de ter uma duração no tempo, como em (l)d. Na língua portuguesa, somente itens lexicais do tipo de plongar, isto é, verbos, recebem sufixos que denotam o tempo e o aspecto do evento descrito pela sentença e que estabelecem uma concordância de número e pessoa com o seu sujeito. Portanto, essas marcas morfológicas permitem que distingamos a categoria gramatical dos verbos das demais categorias de palavras.
Além do critério morfológico, a posição que um item pode ocupar na estrutura sentenciai é uma propriedade definidora crucial da categoria gramatical do item lexical, funcionando, assim, como um critério distribucional. Tomemos uma sentença como (2):
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(2) O menino
a banana.
Quando for solicitado a preencher sua lacuna, o falante certamente vai preenchê-la com itens do tipo encontrou, queria, estava comendo, ou seja, com verbos. O mesmo vai acontecer em contextos mais complexos, como nas seguintes sentenças:
(3) a.
a aula, os alunos saíram.
b. Os alunos foram saindo sem que o professor

Em (3)a, o falante teria as seguintes opções para preencher a lacuna: (i) poderia usar um item como depois; (ii) poderia inserir uma palavra como após, ou (iii) poderia, ainda, usar um verbo como terminar no particípio passado. Entretanto, para que depois possa tomar o constituinte a aula como seu complemento será necessária a introdução de um elemento que possa estabelecer a relação entre eles, como de. Por outro lado, verbos e itens lexicais como após podem, por si mesmos, estabelecer relações com o constituinte que os segue.
Em (3)b, o falante só teria a opção de usar uma forma verbal na lacuna. A expressão sem que introduz uma sentença que requer um verbo flexionado e o falante sabe disso.
O fato de os verbos, nas sentenças acima, serem os itens lexicais que denotam situações que podem ser do tipo de atividades, estados ou eventos também é um critério, nesse caso semântico, com o qual os falantes operam para classificar os itens lexicais de sua língua.
Concluindo, as propriedades morfológicas, distribucionais e semânticas próprias de cada um dos itens lexicais de uma língua nos permitem agrupá-los em categorias que passam a ser definidas exatamente pelo fato de que os itens que as integram compartilham tais propriedades gramaticais. Sendo assim, o trabalho do analista da linguagem é observar o comportamento gramatical de cada um dos itens lexicais que integra o dicionário de sua língua e dividi-los em grupos de itens que exibem comportamentos comuns. Cada grupo corresponde a uma categoria gramatical.
O trabalho de agrupamento de itens lexicais de cada uma das línguas naturais em categorias gramaticais não é novo. Ao contrário, é tão antigo quanto os estudos lingüísticos. Qualquer livro de gramática contém uma seção, comumente chamada "classes de palavras", em que, a partir de alguns critérios tomados como definidores, classificam-se os itens lexicais de uma língua.
O modo como tais livros nos apresentam as categorias gramaticais de nossa língua nos dá a impressão de que o trabalho de classificação dos itens lexicais do português já está pronto, restando-nos somente a tarefa de memorizar os critérios expressos sob a forma de definições, e, conseqüentemente, de memorizar os itens que integram cada classe. No entanto, essa completude é apenas aparente. Quem já se submeteu à tarefa de analisar a língua viva, defrontou-se com problemas, uma vez que, nesses livros, só vemos tratados os casos prototípicos. É por isso
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que, no nosso entender, devemos não memorizar, mas iniciar-nos no trabalho de observação das propriedades gramaticais dos itens lexicais de nossa língua para, assim, ter a experiência da própria elaboração de agrupamentos que serviram de base para o estabelecimento das categorias gramaticais.
Utilizando-nos dos critérios morfológicos, distribucionais e semânticos podemos começar a levantar propriedades caracterizadoras de algumas categorias gramaticais, para que assim possamos vivenciar o processo de construção dos agrupamentos dos itens lexicais de nossa língua. Examinemos as sentenças em (4):
(4) a. A fagia sumiu no céu
b. As fagias sumiram no céu
c. Ele encontrou muitas fagias gigantescas.
A primeira propriedade que observamos ao comparar as sentenças em (4) é a de que a palavra fagia tem formas diferentes dependendo do fato de ela ser singular ou plural. O morfema plural -s é característico de palavras do tipo de garota/garotas. Em nossa língua, palavras terminadas em -a são, em geral, palavras marcadas como pertencentes ao gênero feminino. Marcas de gênero e número são típicas de itens lexicais que integram a categoria dos nomes ou substantivos.
Do ponto de vista distribucional, observamos que em (4)a e (4)b, o item lexical fagia(s) vem antecedido pelos determinantes a, as. Em (4)c, ele vem antecedido pelo quantifícador muitas e seguido pela propriedade expressa pela palavra gigantescas, funcionando como o núcleo do constituinte que integra. Ainda dis-tribucionalmente, observamos que o constituinte do qual fagia(s) é núcleo pode anteceder ou seguir o verbo e satisfaz exigências sintáticas e semânticas por ele impostas. Tanto o fato de serem núcleos de seu constituinte, quanto o fato de satisfazerem as imposições sintáticas e semânticas do verbo reafirmam nossa hipótese de que fagia(s) pertence à categoria dos nomes.
Por fim, apesar de não conhecermos o significado de fagia (s), sabemos que esse item nomeia uma entidade. É a classe dos nomes que inclui os itens lexicais que desempenham o ato de nomear.
Continuemos nossa experiência de observação das propriedades com o fim de estabelecer agrupamentos de itens lexicais analisando as sentenças em (5):
(5) a. O João é um menino murge, mas não feliz.
b. O João e o Pedro são meninos muito murges.
c. O João está mais murge do que qualquer pessoa que eu conheça.
d. Ele tem agido muito murgemente nesses dias.
O item lexical murge na sentença (5)a atribui uma propriedade ao substantivo menino, com o qual concorda em gênero e número. Essa concordância pode ser comprovada na comparação entre (5)a e (5)b. Essa atribuição de propriedade ao substantivo pode se dar de maneira direta ou pela intermediação de um verbo, como na sentença (5)c. O item murge aceita que a propriedade por ele atribuída varie em grau como em (5)b e (5)c. Em (5)b, essa variação de grau se faz de forma
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absoluta; em (5)c, ela se faz de forma comparativa. Com a sentença (5)d vemos que, se acrescentarmos o sufixo -mente a murge, formamos um novo item lexical. Esse novo item lexical parece pertencer a uma nova categoria gramatical. Sabemos isso porque, contrariamente ao que foi observado a respeito de murge, murge-mentenão aceita receber marcas morfológicas flexionais, c'omo pode ser observado pela estranheza da sentença (6):
(6) *Os meninos têm agido muito murgementes nesses últimos dias.
Ao ser exposto às sentenças em (5), qualquer falante do português dirá que, apesar de não saber o significado do item murge, ele parece ser do mesmo tipo que triste, por exemplo. Para o falante iniciado nos estudos gramaticais, isso eqüivale a dizer que o item murge pertence à categoria gramatical dos adjetivos. Essa conclusão baseada basicamente na análise de propriedades morfológicas é corroborada pela análise da distribuição de murge nas sentenças. Em (5)a murge combina-se com o substantivo menino, que, subseqüentemente, combina-se com o determinante um para formar o constituinte um menino murge. Portanto, murge é parte integrante do constituinte nucleado por menino. Já em (5)c, ele é um constituinte independente do item ao qual atribui uma propriedade. A utilização de itens lexicais que têm a propriedade de substituir constituintes, que aqui chamamos de proformas, pode funcionar como evidência de que murge tanto pode integrar um constituinte nucleado por um substantivo quanto pode formar um constituinte independente. Observem as sentenças em (7):

(7) a. O João é isso.
b. O João está assim.
Em (7)a, isso substitui o constituinte um menino murge, da sentença (5)a; em (7)b, assim substitui o constituinte mais murge do que qualquer pessoa, da sentença (5)c. Distribucionalmente, podemos dizer, então, que adjetivos ou integram constituintes nominais, ou são constituintes que têm a característica de atribuir uma propriedade a um constituinte nominal. Essa atribuição de propriedade feita pelo adjetivo é mediada por um verbo, como mostra a sentença (7)b. A conclusão de que murge pertence à categoria dos adjetivos nos permite agora prever outros contextos em que ele pode ocorrer. Consideremos a sentença abaixo:

(8) Eu encontrei murge o aluno que tinha feito a proposta.
Na sentença (8), murge nucleia um constituinte que pode estar relacionado a dois constituintes diferentes Um deles pode ser o constituinte eu. Nesse caso, desencadeia-se a interpretação de que eu estava murge quando encontrei o aluno que tinha feito a proposta. O outro pode ser o constituinte o aluno que tinha feito a proposta, levando-nos à interpretação de que murge era o estado em que estava o aluno que tinha feito a proposta, quando eu o encontrei. Mais uma vez, essas
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observações confirmam nossa análise de que murge pertence à categoria gramatical dos adjetivos.
Cabe ainda observar que a sentença (8) pode ter a ela associada mais uma interpretação: a de que murgepode estar qualificando, de alguma maneira, o próprio evento de encontrar. Essa observação poderia pôr em dúvida a análise até aqui desenvolvida.
Afinal, estamos dizendo que adjetivos se associam a nomes ou a constituintes nominais e essa última interpretação parece mostrar que murge pode se associar a verbos. De fato, há outras palavras da categoria de murge que se associam a verbos, e não a nomes. É isso o que vemos a propósito de redondo, na seguinte sentença, usada no comercial de cerveja:
(9) Skoll, a cerveja que desce redondo.
Nesse exemplo, redondo está associado a descer q não a cerveja: a interpretação aqui não é a de que a cerveja estava redonda enquanto descia, mas é a de que a cerveja descia de modo redondo, suavemente, sem arestas. Aliás, é essa a imagem mostrada no comercial!

A possibilidade que temos de substituir redondo por redondamente e a falta de marca flexionai de gênero (na sentença (9), temos a forma redondo e não redonda) podem nos dar uma pista do que está acontecendo nos casos de (8) e (9). Podemos dizer que, nessas sentenças, temos um caso de coincidência de formas. Na verdade, quando murge integra ou se relaciona a constituintes nominais, ele é um item lexical da categoria dos adjetivos.

Por outro lado, quando murge se relaciona a verbos, ele pertence a uma outra categoria gramatical. O mesmo acontece com redondo. A impossibilidade de esses itens variarem de acordo com os traços de gênero e número de um nome sustentam essa proposta. Sendo assim, podemos dizer que murge e murgemente e redondo e redondamente, nesses casos, são variantes do mesmo item lexical.

Tradicionalmente, itens lexicais terminados em -mente são analisados como integrando uma outra categoria gramatical, a dos advérbios. Tendo em vista a discussão dos casos de (8) e (9), poderíamos nos perguntar: afinal de contas, a que categoria gramatical itens como murge e redondo pertencem: adjetivos ou advérbios? A distribuição desses itens, nas sentenças (8) e (9), parece indicar que estão no caminho certo as hipóteses que sugerem que adjetivos e advérbios em -mente constituem uma única categoria gramatical. Nos termos dessas hipóteses, adjetivos estão para constituintes nominais assim como advérbios em -mente estão para verbos.
Um outro fato que corrobora uma análise que engloba adjetivos e advérbios em -mente em uma única categoria é o de que esse último grupo apresenta propriedades muito diferentes das de outros itens tradicionalmente assumidos como pertencentes à categoria gramatical dos advérbios. Observemos a sentença (10):
(10) Ele pôs o carro dentro da garagem.

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Dentro é um dos itens lexicais tradicionalmente classificado como advérbio. Tanto quanto os itens lexicais terminados em -mente, dentro é invariável, no sentido de que ele não concorda em gênero e número com nenhum outro constituinte da sentença. Entretanto, em termos distribucionais ele exibe propriedades muito diferentes das dos itens terminados em -mente. Em primeiro lugar, ele precisa se compor com outros itens lexicais para formar um constituinte, do qual ele é o núcleo. Como tal, ele impõe exigências sintáticas e semânticas a esses itens lexicais que a ele se juntam para formar um constituinte. Dessa forma, podemos dizer que a garagem satisfaz condições impostas por dentro. Para que a combinação entre dentro e a garagem seja possível é necessária a intermediação do item de. O constituinte dentro da garagem, por sua vez, satisfaz, tanto quanto o constituinte o carro, as condições sintáticas e semânticas impostas pelo verbo pôr. O verbo pôr exige vir acompanhado por dois constituintes, um expressando o objeto locado e outro expressando o lugar em que esse objeto foi locado. Como se vê, portanto, o comportamento sintático e semântico de dentro é muito diferente do comportamento de murge/murge-mente, pondo em dúvida análises que os agrupam na mesma categoria.

As observações feitas neste primeiro item tiveram o objetivo de exemplificar o raciocínio que fazemos para realizar os agrupamentos de itens lexicais. Elas também mostraram que, apesar do grande conhecimento que existe sobre essa questão, muito ainda há por fazer.
3. Estrutura de constituintes
Em sua superfície, as sentenças das línguas naturais são formadas por uma seqüência linear de itens lexicais. Mas essa seqüência não é aleatória. Assim, sabemos que uma sentença como (ll)a é bem formada em português, e que uma sentença como (l l)b não é possível em nossa língua.
(11) a. O menino comprou uma bicicleta nova com a mesada, b. *A comprou uma menino nova o com bicicleta mesada.
Esse conhecimento é parte de nossa competência lingüística, já estudada no volume l deste livro. Sem jamais ter sido formalmente ensinados a reconhecer estruturas possíveis ou impossíveis em nossa língua, temos uma intuição a respeito de como as seqüências de elementos lingüísticos devem se estruturar sucessivamente, de modo a formar unidades mais e mais complexas, até chegarmos à formação de uma sentença. Essas unidades são chamadas de constituintes sintáticos e são os átomos com que a sintaxe opera.
Tomemos, como exemplo, a sentença (ll)a. Sabemos que o item lexical nova deve se juntar à palavra bicicleta para formar um constituinte superior -bicicleta nova - que, por sua vez, se junta ao item lexical uma, para formar um
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constituinte ainda superior - uma bicicleta nova. O mesmo acontece com as palavras menino e o, que formam um constituinte superior - o menino, e com os itens mesada e a, que formam um outro constituinte - a mesada. Esse último constituinte, por sua vez, se junta com a palavra com, para formar um constituinte hierarquicamente superior - com a mesada. O verbo comprou e os constituintes uma bicicleta nova q com a mesada se juntam, formando um constituinte hierarquicamente mais alto - comprou uma bicicleta nova com a mesada. Por fim, os constituintes complexos o menino e comprou uma bicicleta nova com a mesada se juntam para formar o constituinte hierarquicamente mais elevado, que é a sentença.
Essa organização, que parte de itens lexicais e os inclui em grupos maiores e hierarquicamente superiores, é chamada de estrutura de constituintes. A estrutura de constituintes da sentença (l l)a pode ser representada pelo seguinte diagrama:

Figura l_________________________________
o menino comprou uma bicicleta nova com a mesada
| o menino | [comprou urna bicicleta nova com a mesada
menino comprou
uma bicicleta nova!
| uma| (bicicleta novaj
|bicicleta||nova
É a impossibilidade de atribuirmos uma estrutura de constituintes ao exemplo (11 )b que o torna agramatical. Nossa competência lingüística nos informa que não é possível juntarmos um item lexical como a a outro como comprou, para formar um constituinte superior. Da mesma forma, uma palavra como bicicleta não pode formar um constituinte sintático com mesada. E assim por diante.

Em resumo, as sentenças das línguas naturais não são formadas por seqüências lineares de itens lexicais. Elas são formadas a partir da estruturação hierárquica de seus constituintes, em que palavras são agrupadas em sintagmas e sintagmas são agrupados em sintagmas mais altos, até que se chegue ao nível da sentença. Nossa competência lingüística nos permite ter intuições sobre o modo de estruturação das sentenças nas línguas naturais. Entretanto, muitos fatos lingüísticos, vários dos quais de natureza eminentemente sintática, podem nos ajudar a corroborar nossas intuições sobre a estrutura de constituintes de nossa língua. Na próxima seção, vamos examinar alguns deles.
3.1 Evidências para a estrutura de constituintes

Alguns fenômenos da língua que constituem evidência sintática para o fato de que a sentença é uma estrutura hierárquica de constituintes são relacionados às

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possibilidades de distribuição dos constituintes em diversas posições na sentença. Tomemos como exemplo a seguinte sentença:

(12) O João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã.

Para obtermos certos efeitos discursivos, os vários constituintes dessa sentença podem ser colocados em posição inicial. Esse tipo de deslocamento pode ser chamado de topicalização:
(13) a. Amanhã, o João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders'.
b. Na Borders', o João vai comprar o último livro do Chomsky amanhã
c. O último livro do Chomsky, o João vai comprar na Border's amanhã
d. Do Chomsky, o João vai comprar o último livro na Borders' amanhã
e. Comprar o último livro do Chomsky, o João vai amanhã, na Borders'.

Ainda, podemos deslocar os constituintes da sentença para realizar uma operação que é chamada de clivagem. Nessa operação, constituintes da sentença são não só movidos para uma posição frontal, mas também são 'ensanduichados' entre o verbo ser e o conectivo que. Esse deslocamento serve para construirmos sentenças de foco, como as em (14):
(14) a. É o João que vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã
b. E o último livro do Chomsky que o João vai comprar na Borders' amanhã
c. E na Borders' que o João vai comprar o último livro do Chomsky amanhã.
d. E amanhã que o João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders'.

Da mesma maneira, alguns constituintes podem ser deslocados para a posição final da sentença. Comparem-se as sentenças em (15):
(15) a. O João contou [toda a história sobre aquele terrível mal-entendido] [para a Maria], b. O João contou [para a Maria] [toda a história daquele terrível mal-entendido].

Uma outra possibilidade de deslocamento que evidencia a estrutura de constituintes de uma sentença construída com um verbo transitivo direto é a passiviza-ção. De uma sentença como (12), podemos construir uma sentença como (16)a E, de uma sentença como (15)a, podemos construir uma sentença como (16)b:
(16) a. O último livro do Chomsky vai ser comprado pelo João amanhã na Borders'.
b. Toda a história daquele terrível mal-entendido foi contada pelo João para a Maria.
Todos os casos acima apontados envolvem movimento de constituintes Os movimentos evidenciam o fato de que a sentença é estruturada em constituintes precisamente porque não é possível deslocarem-se partes de constituintes, nem seqüências que não formem um constituinte:
(17) a. *[Último], o João vai comprar o livro do Chomsky amanhã na Borders'
b. *[Chomsky], o João vai comprar o último livro do amanhã na Borders'
c. *C> João contou [toda a história daquele] [para a Maria] [terrível mal-entendido].
d. *[Toda a] 0 João contou história sobre aquele terrível mal-entendido para a Maria

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Uma outra evidência de natureza distribucional para a estrutura de constituintes de uma sentença é o que tem sido chamado de fragmentos de sentenças. Considere-se o seguinte diálogo:

(18) A: Aonde o João foi? B: Ao cinema.
Ao invés de dar a resposta completa à pergunta de A, B prefere usar uma forma curta, ou seja, um fragmento de sentença. Só constituintes podem servir como fragmentos de sentença em respostas. Voltando à sentença (12), vejamos quais os constituintes que nós conseguimos evidenciar a partir do uso de construções que envolvem fragmentos de sentenças:
(19) A: Quem vai comprar o último livro do Chomsky amanhã? B: O João.
(20) A: O que o João vai comprar amanhã? B: O último livro do Chomsky.
(21) A: De quem o João vai comprar o último livro amanhã? B: Do Chomsky.
(22) A: Quando o João vai comprar o último livro do Chomsky? B: Amanhã.
(23) A: Onde o João vai comprar o último livro do Chomsky? B: NaBorders'.
(24) A: O que o João vai fazer?

B: Comprar o último livro do Chomsky.
(25) A: O João vai comprar o último livro do Chomsky amanhã? B: Vai.

Notem que, em (25), conseguimos isolar um constituinte - o verbo auxiliar vai - que não havíamos conseguido separar pelas construções que envolvem movimento. É importante sempre se ter em mente que nem todos os constituintes são evidenciados pelas mesmas construções.
Uma outra evidência sintática que comprova a estrutura de constituintes e que já não diz mais respeito à sua distribuição na sentença é a pronominalização. As línguas naturais utilizam-se de proformas para retomar a referência de entidades e eventos já mencionados na sentença ou no discurso. As proformas, no entanto, só substituem constituintes sintáticos. Portanto, toda vez que pudermos substituir uma seqüência de palavras por uma proforma, vamos estar diante de um constituinte sintático. Voltemos à sentença (12), que aqui retomamos em
(26)a, e vejamos os constituintes que podem ser substituídos por proformas:
(26) a. O João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã.
b. Ele vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã, (o João)
c. O João vai comprá-/o na Borders' amanhã, (o último livro do Chomsky)
d. O João vai comprar o último livro do Chomsky amanhã, (na Borders')
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e. O João vai fazê-lo amanhã, (comprar o último livro do Chomsky na Borders')
f. O João vai fazê-lo, (comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã)
Um outro recurso que temos para evidenciar constituintes cujo núcleo é o verbo é o que envolve um fenômeno lingüístico conhecido como elipse. Respeitadas certas condições discursivas, algumas partes da sentença podem ser elididas, como no seguinte diálogo:
(27) A: A criança não vai parar de gritar.

B: Eu acho que ela vai parar de gritar, mas só se você parar de dar bola para ela.
Vejamos como esse recurso se aplica à sentença (12):
(28) a. O João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã e a Maria também
[vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã].
b. O João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã e a Maria também
vai [comprai- o último livro do Chomsky na Dordcrs' amanhã].
c. O João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã e a Maria vai
[comprar o último livro do Chomsky na Borders'] na segunda-feira.
d. O João vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã e a Maria vai
[comprar o último livro do Chomsky] na Brentano's.

Os exemplos em (28) mostram que a elipse se aplica sobre um constituinte da sentença coordenada, que é idêntico a um constituinte da primeira sentença. No caso de (28)a, esse constituinte é integrado pelo verbo auxiliar, o verbo principal e seu complemento, e os constituintes denotadores de tempo e lugar que modificam o verbo. Já em (28)b, o constituinte elidido não inclui o verbo auxiliar. Em (28)c, por sua vez, o constituinte elidido não inclui o advérbio de tempo. E, finalmente, em (28)d, o constituinte elidido deixa de fora constituintes denotadores de lugar. Essas possibilidades evidenciam que aquilo que a gramática tradicional chama predicado tem uma estrutura bastante complexa, sendo formado por vários constituintes hierarquicamente relacionados.
Como nos demais casos, para que o fenômeno lingüístico da elipse possa ocorrer, é necessário que o elemento elidido seja um constituinte sintático. Portanto, uma sentença como (29) não é possível em português:
(29) *O João não vai comprar o último livro do Chomsky na Borders' amanhã, mas a Maria
vai comprar o último livro[ do Chomsky na Dordcrs' amanhã].
Em resumo, nesta seção vimos vários fatos sintáticos que evidenciam que as sentenças das línguas naturais não podem ser entendidas apenas como uma seqüência linear de palavras. Elas são formadas por constituintes hierarquicamente estruturados. O que fizemos com os exemplos analisados acima foi um mero exercício para corroborar nossa intuição sobre a estrutura de constituintes. Entretanto, esses fatos sintáticos assumem um papel especial quando deparamos com um certo tipo de sentença ambígua. Nesses casos, além de evidenciar a estrutura de constituintes das sentenças das línguas naturais, esses fatos servem tam-
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bem para mostrar que existem ambigüidades que são causadas pela possibilidade de estarmos diante de duas ou mais estruturas sintáticas distintas. Vamos tratar de alguns casos desse tipo na próxima seção.
3.2 Ambigüidades estruturais
Tomemos a seguinte sentença:

(30) O Pedro viu a menina com o binóculo.
Essa sentença tem duas possíveis interpretações. Pela primeira, entende-se que o Pedro viu a menina através do binóculo que ele trazia com ele. Pela segunda, entende-se que a menina que o Pedro viu usava ou carregava um binóculo. Em outras palavras, pela primeira interpretação, a expressão com o binóculo é entendida como o instrumento que possibilitou ao Pedro ver a menina. Pela segunda, diferentemente, a mesma expressão é entendida como algo que qualifica a menina que o Pedro viu.
Muitos poderiam argumentar que essa ambigüidade só existe porque a sentença está fora de contexto. Em contextos apropriados, ela deixaria de ser ambígua: um contexto específico nos levaria a uma interpretação e não a outra. Isso não deixa de ser verdade. Entretanto, a sintaxe tem como um de seus objetivos o estabelecimento de princípios gerais que se apliquem de maneira uniforme a um tipo de sentença, independentemente do contexto particular em que ela foi enunciada. Portanto, sua análise não vai poder se basear nas variáveis de contexto, que são inúmeras, e, por essa razão, resistem a uma generalização. O que a sintaxe vai fazer é investigar a possibilidade de a ambigüidade de uma sentença como (30) estar associada a diferentes estruturas. Apliquemos algumas das construções apresentadas na seção anterior para fazer essa investigação. Comecemos por aquelas que envolvem movimento de constituintes:

(31) a. [Com o binóculo], o Pedro viu a menina.
b. Foi [com o binóculo] que o Pedro viu a menina.

(32) a. [A menina com o binóculo], o Pedro viu.
b. Foi [a menina com o binóculo] que o Pedro viu.
Nas sentenças (a), acima, usamos a topicalização, e nas sentenças (b), usamos a clivagem. A primeira observação que deve ser feita é que, com esses movimentos, a ambigüidade desaparece. Nas sentenças em (31), só é possível termos a primeira interpretação, ou seja, a de que o Pedro viu a menina através do binóculo. Nas sentenças em (32), paralelamente, só temos a segunda leitura, ou seja, aquela conforme a qual a menina que o Pedro viu carregava ou usava um binóculo. Notem, ainda, que, no caso de (31), o constituinte que foi deslocado para a realização da topicalização ou da clivagem foi com o binóculo. Poderia ter sido, também, a menina:

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(33) a. [A menina], o Pedro viu com o binóculo.
b. Foi [a menina] que o Pedro viu com o binóculo.
Diferentemente, nas sentenças em (32), o constituinte deslocado foi a menina com o binóculo. Considerando-se que, ao mover constituintes diferentes, acabamos por desfazer a ambigüidade da sentença, estamos diante de uma forte evidência de que essa ambigüidade é causada pela possibilidade de a sentença apresentar duas estruturas sintáticas diferentes.
Vejamos, agora, os resultados da passivização:
(34) a. [A menina] foi vista pelo Pedro [com o binóculo], b. [A menina com o binóculo] foi vista pelo Pedro.
De novo, com a aplicação da passiva, a ambigüidade da sentença original se desfaz. Em (34)a tem-se apenas a possibilidade da primeira leitura, e em (34)b tem-se apenas a possibilidade da segunda interpretação. Ainda, da mesma forma que aconteceu com a topicalização e a clivagem, os constituintes que foram deslocados para a construção da passiva foram diferentes. Em (34), apenas a menina foi movido para a posição de sujeito da sentença. Diferentemente, em (34)b, o constituinte que agora ocupa a posição de sujeito é a menina com o binóculo. Eis aqui, portanto, uma outra evidência de que a ambigüidade da sentença (30) é de natureza sintática: uma única ordenação linear esconde duas estruturas hierárquicas distintas. A aplicação do teste de fragmento de sentença confirma essa idéia:
(35) A: Quem o Pedro viu com o binóculo? B: A menina.
(36) A: Quem o Pedro viu?
B: A menina com o binóculo.
O mesmo acontece com a pronominalização:
(37) a. O Pedro a viu com o binóculo, (a = a menina) b. O Pedro a viu. (a = a menina com o binóculo)
A primeira leitura, ou seja, a de que o Pedro viu a menina através do binóculo está associada à possibilidade de a menina e com o binóculo serem dois constituintes separados. Por outro lado, a leitura segundo a qual a menina que o Pedro viu usava ou carregava um binóculo está associada à possibilidade de a menina com o binóculo ser um único constituinte sintático. Todos os movimentos e substituições de constituintes revelam essas possibilidades e evidenciam o caráter estritamente sintático da ambigüidade da sentença (30).
Passemos, agora, à análise de uma outra sentença ambígua:
(38) Os meninos comeram as maçãs verdes.
A primeira interpretação que se pode fazer dessa sentença é a de que, considerando-se que existam, no cenário, maçãs vermelhas e maçãs verdes, os meninos
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comeram as maçãs verdes. A segunda leitura possível é a de que os meninos comeram as maçãs antes de elas amadurecerem, quando elas ainda estavam verdes.
Como já foi dito a propósito da sentença (30), concordamos que só nos damos conta dessa ambigüidade porque a sentença está fora de contexto. Contextos específicos nos levariam a uma única interpretação, fazendo-nos automaticamente excluir a outra possibilidade. Entretanto, neste texto, queremos mostrar que a ambigüidade de uma sentença como (38), tanto quanto a de uma sentença como (30), é causada pela possibilidade de ela apresentar diferentes estruturas sintáticas.
No caso de (38), uma outra possibilidade de explicação para a ambigüidade poderia ser levantada. Talvez ela se deva à possibilidade de que, em nosso léxico, existam duas palavras verde, que têm o mesmo som e grafia, mas sentidos diferentes: um deles corresponderia à cor verde e o outro seria equivalente a não-maduro(a). Entretanto, podemos argumentar contra essa explicação, mostrando que casos de ambigüidade semelhantes acontecem em sentenças construídas com palavras que não apresentam a mesma duplicidade de sentido que verde. Observe-se a sentença (39):
(39) Os meninos comeram as cenouras cruas.

A ambigüidade é a mesma apresentada pela sentença anterior. Duas leituras são possíveis. A primeira é a de que, de um conjunto de cenouras cozidas e cruas, os meninos comeram as cruas e deixaram as cozidas. A segunda é a de que os meninos comeram as cenouras quando elas ainda estavam cruas. Nesse caso, no entanto, não podemos nos valer de uma explicação de caráter lexical. Em ambos os casos, o sentido das palavras crua é o mesmo. Portanto, mantemos a idéia de que a ambigüidade de (38) (e também de (39)) é de natureza estritamente sintática. As construções que usamos para evidenciar a estrutura de constituintes vão nos ajudar a comprovar essa idéia.

Como fizemos anteriormente, comecemos pela topicalização e pela clivagem:

(40) a. [As maçãs verdes], os meninos comeram.

b. Foram [as maçãs verdes] que os meninos comeram

(41) a. [As maçãs], os meninos comeram [verdes].
b. Foram [as maçãs] que os meninos comeram [verdes].

Nas sentenças (a), acima, temos casos de topicalização, e nas sentenças (b), temos casos de clivagem. Com esses movimentos, a ambigüidade que existia na sentença original desaparece. Nas sentenças em (40), só é possível termos a interpretação de que os meninos comeram as maçãs verdes e não as vermelhas. Nas sentenças em (41) só temos a leitura de que os meninos comeram as maçãs antes de elas amadurecerem. Em (40), o constituinte que foi deslocado para a realização da topicalização ou da clivagem foi as maçãs verdes. Diferentemente, nas sentenças em (41), o constituinte deslocado foi as maçãs. Novamente, estamos diante do fato de que, ao mover constituintes diferentes, desfazemos a ambigüidade da
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sentença. Isso indica que a ambigüidade é causada pela possibilidade de a sentença apresentar duas estruturas sintáticas diferentes.
Vejamos, agora, os resultados da passivização:
(42) a. [As maçãs verdes] foram comidas pelos meninos, b. [As maçãs] foram comidas verdes pelos meninos.
Da mesma forma que na topicalização e na clivagem, com a aplicação da passiva a ambigüidade da sentença original se desfaz. Em (42)a, tem-se apenas a possibilidade de primeira leitura e, em (42)b, tem-se apenas a possibilidade da segunda interpretação. Os constituintes que foram deslocados para a construção da passiva foram diferentes. Em (42)a, o constituinte que foi movido para a posição de sujeito da sentença foi as maçãs verdes. Diferentemente, em (42)b, apenas as maçãs ocupa a posição de sujeito. Estamos, mais uma vez, diante de uma evidência de que a ambigüidade da sentença (38) é de natureza sintática. Corroboram essa idéia os testes de fragmento de sentença, em (43) e (44), e o de pronominali-zação, em (45):

(43) A: O que os meninos comeram? B: As maçãs verdes.

(44) A: O que os meninos comeram verde? B: As maçãs.

(45) a. Os meninos as comeram, (as = as maçãs verdes) b. Os meninos as comeram verdes, (as = as maçãs)

A leitura segundo a qual os meninos comeram as maçãs verdes e não as vermelhas está associada à possibilidade de as maçãs verdes serem um único constituinte sintático. Diferentemente, a leitura segundo a qual os meninos comeram as maçãs antes de elas amadurecerem está associada à possibilidade de as maçãs e verdes serem dois constituintes sintáticos separados. Mais uma vez, construções que movem ou substituem constituintes revelaram essas possibilidades de maneira inequívoca, evidenciando o caráter estritamente sintático da ambigüidade da sentença (38).

4. Predicados e argumentos
A idéia de que usamos as línguas naturais para a expressão do pensamento, ou seja, a idéia de que as línguas naturais se relacionam a representações mentais não é nova. É com base nessa idéia que vamos desenvolver esta seção sobre predicados e argumentos.
Imaginem uma fotografia em que aparecem uma criança e um gato. A fotografia foi tirada em um lugar qualquer, uma saleta, por exemplo, em que havia,

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além da criança e do gato, uma poltrona vermelha, uma mesa, um cesto de palha contendo vários novelos de lã e algumas revistas sobre a poltrona, e um quadro pendurado na parede atrás da poltrona. Perto da criança e do gato havia muitos pedaços de fios de lã arrebentados.

Ao comentar uma fotografia como essa, podemos descrever várias situações diferentes, dependendo do que se mostrar mais relevante para nós. E cada pessoa que se proponha comentar a mesma fotografia poderá descrevê-la de modo diferente, realçando uma determinada situação e minimizando a importância de outra. Assim, as sentenças que seguem, em (46), são expressões de algumas situações ou propriedades possivelmente reveladas pela fotografia:

(46) a. Criança adora gato.
b. O gato está correndo pela sala.
c. O gato arrebentou um monte de lã.
d. Um monte de lã arrebentou.
e. Nossa! Houve uma guerra da criança contra o gato!
f. Tem um cesto de palha sobre a poltrona.
g. Esse gato é amigo da criança.
h. A destruição dos novelos pelo gato vai irritar a mãe.
i. A poltrona é vermelha.
j. O quadro na parede é agradável aos olhos.

As sentenças de (46)a a (46)d expressam situações diferentes. Situação é um termo geral para descrevermos atividades, estados ou eventos. Cada uma dessas situações é descrita, em termos gerais, por uma única palavra, nesse caso o verbo das sentenças. Assim, tem-se a situação de adorar em (46)a, de correr em (46)b e de arrebentarem (46)c e (46)d, todas descritas por um verbo. Essas situações envolvem um número de participantes de um certo tipo, desempenhando papéis específicos dentro dela.

Assim, a situação de adorar, expressa em (46)a, requer a presença de dois participantes que são os constituintes criança e gato. Cada um deles desempenha um papel diferente nessa situação: um adora e o outro é adorado. De modo paralelo, o evento de correr, em (46)b, também envolve a presença de participantes. Na verdade, nesse caso, apenas um participante é requerido e o gato é o constituinte que satisfaz esse requerimento. Esse participante também desempenha um papel específico dentro da situação descrita, que é o de corredor. O constituinte pela sala não está na sentença para preencher um requisito do verbo correr. Dizemos, então, que, em (46)a, criança e gato são os argumentos do predicado adorar. Sobre (46)b, dizemos que o gato é o único argumento do predicado correr. Podemos, então, caracterizar os argumentos de um predicado como os elementos que são capazes de satisfazer suas exigências e que desempenham papéis específicos determinados por ele. A expressão, pela sala, por outro lado, não se caracteriza como argumento: além de não ser requerida pelo predicado, não desempenha nenhum papel designado por ele.

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Podemos representar essas situações e seus participantes ou, em outros termos, esses predicados e seus argumentos como (47)a e (47)b.

(47) a. adorar (criança, gato)
b. correr      (o gato)

Assim, dizemos que adorar é um predicado de dois lugares, porque ele toma dois argumentos, cada um desempenhando um papel diferente. De correr, dizemos que ele é um predicado de um lugar, porque ele toma apenas um argumento, que também desempenha um papel específico.

Voltemos às possibilidades de descrição da fotografia. As sentenças em (46)c e (46)d expressam duas situações semelhantes. Cada uma delas define participantes diferentes, no entanto. A situação em (46)c requer a presença de dois participantes, os constituintes o gato e um monte de lã, que vão, cada um, desempenhar um papel diferente: o de arrebentador e o de arrebentado. Em (46)d, apenas um participante se faz necessário, um monte de lã. Esse participante também desempenha um papel nessa situação, o daquele que é arrebentado. Assim, em

(46)c, ogatoe um monte de lã são argumentos do predicado de dois lugares arrebentar, em (46)d, um monte de lã é argumento do predicado de um lugar arrebentar. Reparem que o papel desempenhado pelo constituinte um monte de lã é o mesmo em (46)c e (46)d e, por isso, em (48)a e (48)b, temos uma possibilidade inicial de representação dos predicados nessas sentenças:

(48) a. arrebentar b. arrebentar
(o gato, um monte de lã) (um monte de lã)
Os verbos são considerados os predicados por excelência, mas todas as outras categorias lexicais também podem funcionar como tal. É o caso das preposições, dos nomes e dos adjetivos, que discutimos a seguir.

Tomemos, inicialmente, as sentenças (46)e e (46)f. Observem o comportamento das preposições contra em (46)e, e sobre em (46)f. Notem que, tanto quanto os verbos, elas descrevem uma situação, ainda que estática, da qual participam certas entidades. A preposição contra, por exemplo, expressa uma situação que envolve dois participantes em uma relação particular de oposição ou antagonismo. No caso da sentença (46)e, esses participantes são a criança e o gato. Esses constituintes satisfazem os requerimentos impostos pela preposição contra e desempenham os papéis que ela lhes atribui. A preposição sobre, em (46)f, expressa uma situação de representação do espaço, que envolve dois participantes: um cesto de palha e a poltrona. Esses constituintes satisfazem as exigências impostas pela preposição sobre e desempenham os papéis que são determinados por ela.

Temos, portanto, que, na sentença em (46)e, existe um predicado de dois lugares, que é a preposição contra, que toma como argumentos os constituintes a criança e o gato. Em (46)f, o predicado de dois lugares sobre toma, como seus argumentos, os constituintes um cesto de palha e a poltrona. As representações que, inicialmente, podemos propor para esses predicados são:

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(49) a. contra (a criança, o gato)
b. sobre (um cesto de palha, a poltrona)
Passemos, agora, à observação da sentença (46)g. Essa sentença expressa a situação estativa de o gato ser amigo da criança. A sentença (46)a também expressa uma situação estativa: a de que criança adora gato. Mas existe uma grande diferença entre as sentenças (46)a e (46)g, no que diz respeito ao tipo de verbo que participa de sua construção. Podemos dizer que o verbo adorar, em (46)a, é um verbo que tem valor predicativo, no sentido de que ele determina três coisas: (i) o número de participantes envolvidos na situação que ele descreve; (ii) as características que esses participantes devem ter - se precisam ser [± humanos], [± animados], etc.; e (iii) o papel que cada um desses participantes desempenha na evento descrito. Diferentemente, o verbo ser, em (46)g, não exibe essa capacidade. Ele é um verbo puramente gramatical, no sentido de que sua função é a de simplesmente carregar as marcas de flexão de tempo, aspecto, modo e pessoa. Ele não tem valor predicativo. Se o verbo sernão tem valor predicativo, o que é que está funcionando como predicado na sentença (46)g? É o nome amigo. Vejam que é o termo amigo que requer pelo menos dois participantes na situação que ele descreve, que determina as características que esses participantes precisam ter e que estabelece quais os papéis que eles vão ter na situação descrita. Em (46)g, os constituintes esse gato e a criança são esses participantes. Dizemos, então, que amigo, na sentença em exame, é um predicado de dois lugares, que toma as expressões esse gato e a criança como seus argumentos. Portanto, nomes, em determinados contextos, também podem ser considerados predicados.

Mas que contextos são esses? Será que nomes só podem ser predicados em sentenças construídas com verbos que não têm valor predicativo, como ser? Não. Para entendermos melhor como isso pode ocorrer, passemos à análise da sentença (46)h. Nessa sentença, temos uma situação expressa pelo verbo irritar, na qual estão envolvidos dois participantes - a destruição dos novelos pelo gato e a mãe -ambos satisfazendo as imposições do verbo. Portanto, nessa sentença, há um predicado de dois lugares, que é o verbo irritar, e seus dois argumentos são a destruição dos novelos pelo gato e a mãe. Mas notem que essa não é a única relação de predicação que existe nessa sentença. Dentro do argumento a destruição dos novelos pelo gato também existe uma relação de predicação, dessa vez estabelecida pelo nome destruição. Vejam que destruição expressa uma situação estática, que envolve dois participantes: o gato e os novelos. Cada um deles desempenha um papel específico, respectivamente, o de destruidor e o de destruído. Mais uma vez, portanto, estamos diante de um predicado de dois lugares, que toma dois argumentos.

Dessa fôrma, vemos que nomes, tanto quanto verbos e preposições, também podem se comportar como predicados. As representações dos nomes que funcionam como predicados nas sentenças (46)g e (46)h estão a seguir:

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(50) a. amigo b. destruição
(esse gato, a criança) (o gato, os novelos)

Finalmente, passemos às sentenças (46)i e (46)j, com especial atenção para os adjetivos vermelha, em (46)i, e agradável em (46)j. Novamente, estamos diante de sentenças construídas com o verbo ser que, como já vimos, é um verbo que não tem valor predicativo. Nessas sentenças, a predicação está sendo feita pelos adjetivos, que expressam propriedades que precisam ser atribuídas a entidades. Na sentença (46)i, a propriedade vermelha é atribuída à entidade expressa pelo constituinte a poltrona. Da mesma forma, em (46)j, a propriedade agradável se aplica à entidade expressa pelo constituinte o quadro na parede e atinge a entidade denotada pelo constituinte os olhos. O predicado de um lugar vermelho toma o constituinte a poltrona como seu único argumento. O predicado de dois lugares agradável, por sua vez, toma os constituintes o quadro na parede e aos olhos como seus argumentos. Sua representação pode ser feita da seguinte forma:

(51) a. vermelho b. agradável
(a poltrona)
(o quadro na parede, aos olhos)
O que fizemos até aqui, então, foi observar a relação entre predicados e argumentos em funcionamento em uma língua natural, o português brasileiro. Concluímos que verbos, nomes, preposições, adjetivos e advérbios podem ser predicados e que, nesse caso, determinam o número de participantes da situação que expressam, as características que esses participantes devem ter e o papel que cada um deles desempenha na situação. É importante enfatizar que a noção de predicado que estamos usando não corresponde exatamente à noção de predicado de que faz uso a gramática tradicional. Para nós, todas as categorias lexicais - nomes, verbos, adjetivos, advérbios e também as preposições - podem ser consideradas predicados. Predicados são itens capazes de impor condições sobre os elementos que com eles compõem o constituinte do qual são núcleos. Argumentos, por outro lado, são os itens que satisfazem as exigências de combinação dos predicados.
Retomemos, em mais detalhe, a idéia de que os predicados impõem exigências a seus argumentos. Essas exigências são de dois tipos: semânticas e sintáticas. No que diz respeito às exigências semânticas, elas estão relacionadas aos papéis dos participantes na situação descrita. Tecnicamente, chamamos esses papéis de papéis temáticos. Um predicado atribui tantos papéis temáticos quantos forem os argumentos associados a ele. Papéis temáticos são, portanto, os papéis desempenhados por todo argumento de um predicado e atribuídos a esses argumentos pelo próprio predicado que os seleciona. Intuitivamente, podemos dizer, de um predicado como adorar, na sentença (46)a, que ele atribui os papéis temáticos de experienciador (aquele que adora, o adorador), e o de tema (o objeto adorado). De um predicado como correr, na sentença (46)b, podemos dizer que ele, tendo apenas um argumento, atribui apenas um papel temático, que é o de agente (aquele que corre, o corredor).

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No léxico, comprar é um predicado que toma dois argumentos, um que expressa o objeto comprado e outro que expressa o comprador. No caso da sentença em análise, esses argumentos são representados pelos constituintes batatas e o João. Na sintaxe, comprar vai ser mapeado em uma posição de núcleo, já que esse é o termo responsável por todas as exigências impostas aos outros termos da sentença. Uma primeira generalização que podemos fazer, então, é a de que predicados são mapeados em posição de núcleo. Será que os dois argumentos de comprar se juntam ao verbo simultaneamente? Evidências de várias ordens, que não caberiam nesta introdução à análise sintática, demonstram que não. Um dos argumentos, que chamamos de argumento interno, junta-se primeiramente ao verbo, ocupando uma posição que chamamos de complemento. O núcleo e seu complemento formam um sub-constituinte, ao qual se junta o segundo argumento, denominado argumento externo. Chamamos a posição ocupada pelo argumento externo de especificador. Com isso, formamos o constituinte verbal, que pode ser representado por um diagrama arbóreo, como o seguinte:


Esse diagrama representa os passos de estruturação mencionados acima. O verbo é mapeado na sintaxe na posição de núcleo. Notem que o rótulo dessa posição é V, que corresponde à categoria gramatical do predicado que está sendo mapeado. Em seguida, a ele se junta seu argumento interno, que, no nosso exemplo, corresponde ao constituinte batatas, cujo núcleo é um nome. Por isso, o rótulo desse constituinte é SN, que significa sintagma nominal. Com isso, forma-se o sub-constituinte representado no diagrama pelo rótulo V. A esse sub-constituinte junta-se o argumento externo do verbo, o João, também nucleado por um nome, daí o rótulo de SN. Com isso, fecha-se o sintagma verbal, representado pelo rótulo SV. Nessa configuração, dizemos, então, que o argumento interno, batatas, ocupa a posição de complemento, e o argumento externo, o João, ocupa a posição de especificador.
Em resumo, o esqueleto estrutural que a sintaxe constrói tem por base as seguintes relações:
i. a relação que se estabelece entre o núcleo e seu complemento; ii.a relação que existe entre o sub-constituinte formado pelo núcleo + complemento e o especificador.

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Notem que, por essa análise, o que tradicionalmente se conhece por sujeito e objeto resulta de uma configuração estrutural ao invés de receber uma definição nocional. Dessa forma, sujeito é o constituinte que ocupa a posição de especifíca-dor e objeto direto é o constituinte que ocupa a posição de complemento do verbo. Com isso, evita-se o uso definições problemáticas como as que dizem que sujeito é aquele que pratica a ação expressa pelo verbo.

Mais ainda. Essa análise prevê que todas as categorias podem ter um complemento e um especificador a elas associados. Assim, passemos agora à verificação de como as projeções de cada categoria - nomes, adjetivos e preposições -se realizam, usando como exemplos os predicados em (54).

(54) a. A destruição dos novelos pelo gato.
b. O quadro na parede é agradável aos olhos.
c. O cesto de palha está sobre a poltrona.
Comecemos por (54)a. Já vimos que destruição é um predicado que toma dois argumentos, um que expressa o objeto destruído e outro que expressa o destruidor. Em (54)a, são os constituintes os novelos e o gato que representam esses argumentos. Se destruição é o predicado, ele vai ocupar a posição de núcleo da representação sintática. Essa posição corresponde à posição N (de nome). O argumento interno, ou seja, o objeto destruído, junta-se primeiramente ao núcleo do predicado, ocupando a posição de complemento. O resultado parcial é um sub-constituinte rotulado N', ao qual se junta o argumento externo. O resultado final é um constituinte rotulado SN -sintagma nominal, que pode ser representado por um diagrama arbóreo, como o seguinte:
Por razões de natureza sintática, em português, não podemos ter argumentos de um nome sem que eles sejam introduzidos por uma preposição. Portanto, ao argumento interno de destruição precisamos acrescentar a preposição de, de modo a obter dos novelos; e a seu argumento externo, acrescentamos a preposição por, de modo a obter pelo gato. Algumas peculiaridades do português também nos forçam a fazer uma outra operação para que possamos ordenar linearmente os constituintes do sintagmas, de modo a obtermos a seqüência a destruição dos novelos pelo gato.

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Quanto a (54)b, temos que o predicado deve ser agradável, já que, como foi visto, o verbo ser não tem valor predicativo. Esse predicado também toma dois argumentos, um que expressa o objeto que tem a propriedade de ser agradável - o quadro na parede - e outro que expressa a entidade atingida por essa propriedade que o objeto denotado tem - os olhos. Sendo predicado, agradável ocupa a posição de núcleo da representação sintática, que, nesse caso, recebe o rótulo A, da categoria adjetivo. Mais uma vez, o argumento interno, representado pela entidade afetada pela propriedade de ser agradável, ocupa a posição de complemento e se junta ao núcleo do predicado, resultando no sub-constituinte agradável aos olhos, rotulado A'. A esse sub-constituinte vai se juntar o argumento externo o quadro na parede. O resultado final será um constituinte o quadro na parede agradável aos olhos, rotulado SÁ, representado pelo seguinte diagrama arbóreo:

Finalmente, (54)c tem a preposição sobre como um predicado de dois argumentos: um que expressa um objeto - o cesto depalha-e outro que expressa o lugar sobre o qual esse objeto se encontra - a poltrona. Na sintaxe, sobre ocupa a posição de núcleo da representação, nesse caso a posição P (de preposição), à qual se junta, primeiramente, o argumento interno, que ocupa a posição de complemento. Disso resulta um sub-constituinte rotulado P'. O argumento externo se junta a esse conjunto e o resultado final é um constituinte rotulado SP, como no diagrama arbóreo a seguir:

Uma última observação se faz necessária. As sentenças podem conter constituintes que não são previstos como exigências dos predicados no léxico. É isso o que acontece com o constituinte ontem, na sentença abaixo:
(55) O João comprou batatas ontem.

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Onde é que podemos colocar constituintes como esses em nossa estrutura? Eles não ocupam nem a posição de complemento, nem a de especificador. Na verdade, eles ocupam uma outra posição na estrutura, a posição de adjunto, que apresentamos na Figura 6:

 Um livro de introdução aos estudos de sintaxe tendo por base a Gramática Gerati-va. É destinado a estudantes de graduação em Letras ou Lingüística ou a todos que se interessarem por uma abordagem formal para o tratamento sintático das línguas naturais.

Reparem que ao incluirmos o adjunto na estrutura, criamos uma projeção que repete o rótulo do sintagma verbal. Isso acontece porque adjuntos não formam um novo nível hierárquico. Essa é a grande diferença sintática que existe entre argumentos e adjuntos. Quando argumentos são mapeados na sintaxe, o núcleo projeta um novo nível hierárquico. Quando um adjunto entra na estrutura, isso não acontece. Ele é somente um outro segmento da mesma categoria. Assim, na estruturação da sentença (55), ilustrada na Figura 6, vemos que o núcleo verbal comprar se compõe, primeiramente, com seu complemento, o sintagma nominal batatas. Nesse momento, o núcleo projeta um nível hierárquico superior, que tem o rótulo de V, na Figura 6. Essa nova expressão complexa, formada pelo verbo e seu complemento, por sua vez, compõe-se com o argumento externo, o sintagma nominal o João. Nesse momento, há a projeção de um novo nível hierárquico superior, que, desta vez, toma o rótulo de SV. Fecha-se, assim, a projeção do núcleo comprar. Com isso, queremos dizer que foram projetadas, na sintaxe, todas as expressões lingüísticas exigidas pelo verbo, nomeadamente, o argumento que corresponde ao objeto comprado e o argumento que corresponde ao agente comprador. Desse momento em diante, o núcleo comprar não pode mais projetar níveis superiores, porque todas as suas exigências já foram satisfeitas.
Na sentença em exame, a presença do advérbio de tempo ontem não se deve a uma exigência do verbo comprar. Por isso, quando ele é mapeado na sintaxe, não há que se falar em uma nova projeção hierárquica. Antes, ele é mapeado como um constituinte que se aplica a uma projeção fechada do tipo SV, e a mantém com a mesma estruturação hierárquica que ela apresentava anteriormente. Essa é a razão pela qual dizemos que um adjunto é um segmento da categoria à qual ele se aplica.

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4. Conclusão

A sintaxe é a área da Lingüística que estuda a estrutura das sentenças. Os princípios envolvidos na estruturação das sentenças de nossa língua são parte de nossa competência lingüística. Portanto, estudar a estrutura das sentenças envolve, como um primeiro passo, trazer à tona um conhecimento que qualquer falante da língua tem. Os alicerces desse conhecimento são:
i. sabermos organizar os itens lexicais em categorias gramaticais, estabelecidas de acordo com as características morfológicas, distribucionais e semânticas por eles exibidas;
ii. sabermos que a sentença resulta da projeção dessas categorias em constituintes hierarquicamente estruturados, fazendo com que ela não seja apenas uma seqüência linear de itens lexicais;
iii. sabermos que esses constituintes se organizam a partir de um núcleo cujas exigências sintáticas e semânticas devem ser satisfeitas pelos elementos que vão se compor com ele.
Nosso objetivo, neste texto, foi justamente o de dar o primeiro passo, no estudo da estruturação das sentenças.
Exercícios

A.Determine a que categorias gramaticais pertencem as palavras em caixa alta (palavras inventadas) nas seguintes sentenças, retiradas, em sua forma original, de obras de Machado da Assis. Argumente em favor de sua análise.

(1) a) Como eu estava cansado, seflei os olhos três ou quatro vezes.
b) Disse isso seflando o punho e proferi outras ameaças.
c) José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e seflou outra vez o rosto.
d) O beijo de Capitu SEFLAVA-me os lábios.

(2) a) E a voz não lhe saía dolma, mas velada e esganada. b) Já agora acabo com as coisas dolmas.
b) A cabeça da minha amiga sabia pensar dolmo e depressa.
c) Senti que não poderia falar DOLMAmente.

(3) a) Fiquei tão mupestre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena
na mão.
b) As horas tristes e compridas eram agora breves e mupestres.
c) Ele me explicou por estas palavras mupestres.

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(4) a) Era o pai de Capitu, que voltava da repartição um pouco mais bodro,
como usava às vezes.
b) Não quero saber dos santos óleos da teologia; desejo sair daqui o mais bodro que puder, ou já....
c) (...) íamos sempre muito bodro, logo depois do almoço, para gozarmos o dia compridamente.
B. A definição usual de advérbio é:
"Advérbio é uma palavra invariável que modifica um verbo, um adjetivo ou outro advérbio, exprimindo circunstância de tempo, lugar, modo, dúvida, etc."

Examine o comportamento da palavra lá, usualmente classificada como advérbio, nas sentenças abaixo. Diga se a definição acima pode se aplicar a cada uma delas. Se não, diga a que categoria você acha que lá pertence, em cada um dos exemplos.

(5) LÁ é maravilhoso.
(6) Eu detestava lá.
(7) Ele saiu de lá.
(8) Aquele homem lá disse coisas ótimas.
(9) Eu cheguei lá em Santos.
(10) Eu cheguei lá atrasado.
(11) LÁ, tudo acontecia como se ninguém soubesse de nada.

C. Dentre as construções discutidas no item 3 do texto (topicalização, clivagem, pronominalização, fragmento de sentença, elipse), utilize as que forem apropriadas para descobrir as diferentes possibilidades de estruturação sintática das sentenças que seguem:

(12) O professor vai presentear os alunos com notas altas.
(13) Os alunos andavam entusiasmados pelo Museu.
(14) O presidente parecia confiante no Senado.
D. Nas expressões abaixo, os predicados, que são os núcleos de sua projeção, aparecem em caixa alta. Diga qual a posição que os demais constituintes ocupam na projeção desses predicados: complementos, especificadores ou adjuntos. Para treino, faça uma árvore para cada projeção. Ignore os artigos e os verbos de ligação.

(15) professores conscientes de sua responsabilidade
(16) a consciência da responsabilidade
(17) um jogador de futebol da Itália
(18) o João joga basquete nos Estados Unidos
(19) o pé sobre a mesa
(20) o pé sobre a mesa é falta de educação
(21) trabalhadores irritados com seus baixos salários

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(22) alunos irritados com a falta de professores é comum
(23) um aluno de Física de cabelo encaracolado
(24) a Cecília conheceu um aluno de Física de cabelo encaracolado
(25) a profundeza do oceano ao sul do Equador
(26) o oceano ao sul do Equador é profundo
(27) líderes governistas contra deputados da oposição
(28) líderes governistas contra deputados da oposição é o resumo da história política do país
(29) olhos sensíveis à claridade
(30) a sensibilidade à claridade causa problemas sérios para a visão

E. Levando em consideração as exigências lexicais dos predicados em caixa alta, localize, nas sentenças abaixo, o elemento que atende a cada uma dessas exigências.

(31) As escolas não punem os alunos que faltam às aulas.
(32) Ao aplicar o exame, o diretor não escolheu os melhores alunos.
(33) Como os governadores não propuseram emendas à Constituição aos deputados e senadores, o presidente já anunciou apoio ao projeto.
(34) Como foram analisadas mais de mil propostas, vÊ-se que a escolha deve ter sido difícil.
(35) Os alunos aprovados ganham bolsas para estudar e vivem nos alojamentos da faculdade.
(36) Nos primeiros anos de vida pode-se dizer se uma criança será um
adulto introvertido ou expansivo. Isso é o que se chama traço de personalidade.
(37) Que animais o diretor do zoológico disse que a comida que comeram foi comprada direto do CEAGESP?

F. Considere os pares de sentenças abaixo. As sentenças (a) têm um argumento presente a mais do que a variante (b). Considerando as exigências lexicais feitas pelo verbo em cada sentença, imagine uma explicação para essa possibilidade. Contraste os pares entre (38) e (41) com as impossibilidades apresentadas pelos pares entre (42) e (45) (o sinal * que antecede os exemplos em (b) marca a agra-maticalidade das sentenças):
(38) a) A Maria está lavando suas camisetas importadas, b) As camisetas importadas lavam fácil.
(39) a) A tempestade afundou o barco, b) O barco afundou.
(40) a) Poirot prendeu o criminoso, b) O criminoso foi preso.

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(41) a) As crianças já comeram o bolo. b) As crianças j á comeram.
(42) a) O Pedro vai comprar aquela casa de esquina, b) *Aquela casa de esquina compra fácil.
(43) a) O professor escreveu o artigo, b) *O artigo escreveu.
(44) a) A atitude do marido chateava a Ana. b) *A Ana era chateada.
(45)a) As crianças devoraram o bolo. b) *As crianças devoraram.

Bibliografia
chomsky, N. (1981). Lectures on Government and Binding: the Pisa Lectures. Dordrecht: Foris.
chomsky, N. (1986). O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso. Tradução Anabela Gonçalves e Ana
Teresa Alves. Lisboa: Editorial Caminho. franchi, C. (1997). Teoria da predicação. Ms. Unicamp/USP. franchi, C., E. V. negrão & A. L. de P. muller. (1998). "Um exemplo de argumentação em sintaxe". Revista da
ANPOLL, n. 5, pp. 37-63, jul-dez.
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Sugestões de leitura
franchi, C., E. V. negrão & A. L. de P. muller. (1998). Um exemplo de argumentação em sintaxe. Revista da ANPOLL, n. 5, pp. 37-63, jul-dez. Um artigo que leva o leitor, passo a passo, a construir uma análise sintática para a estrutura de constituintes de sentenças ambíguas.
mioto, C. M.C., figueiredo-silva e R.V. lopes. (1999). Manual de Sintaxe. Florianópolis: Insular.